sábado, 11 de dezembro de 2010

Austregésilo Carrano Bueno > Psiquiatria e eletrochoque > Espiritualidade e Sociedade ...:::

Após assistir ao filme “Bicho de Sete Cabeças” (dirigido por Laís Bodanzky), sentei no computador e fui pesquisar mais sobre a origem do mesmo, por ser baseado em fatos reais. Achei interessantíssimo a óptica sobre a psiquiatria no Brasil. Ainda que me pareceu um pouco diferente da realidade, mas afinal de contas é um ponto de vista e vale a pena ver o filme. O crédito fica para o site http://www.espiritualidades.com.br.



... Austregésilo Carrano Bueno
> Psiquiatria e eletrochoque


Artigos, teses e publicações
Austregésilo Carrano Bueno é escritor, ator e diretor de teatro. Escreveu o livro “Canto dos Malditos”, que deu origem ao filme “Bicho de Sete Cabeças” (dirigido por Laís Bodanzky) e conta a história da sua época como paciente psiquiátrico – uma história que a própria Rets já mostrou. Desde o fim desse pesadelo, que lhe rendeu um processo movido pelos médicos da clínica onde esteve internado, Carrano se empenha na defesa da reforma psiquiátrica. Às vésperas de mais um 18 de maio, quando se comemora o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, voltamos a procurá-lo para conversar a respeito da situação do atendimento às pessoas com transtornos mentais no país.
Sobre o programa De Volta para Casa, criado pela Lei 10.708, de 31 de julho de 2003, para dar “assistência, acompanhamento e integração social, fora da unidade hospitalar, a pessoas acometidas de transtornos mentais com história de longa internação psiquiátrica”, Carrano não poupa críticas. ”Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500 pessoas. Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto porque é muito burocrático, exigente demais. Exige, por exemplo, que o usuário tenha sido internado no mínimo por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!”, reage.
Integrante do Movimento de Luta Antimanicomial, o escritor reconhece algumas conquistas, mas lamenta que batalhas como o combate aos eletrochoques – a Terapia do Terror, como prefere chamar – ainda não tenham sido vencidas. “Esta falsa psiquiatria que chamam de moderna matou mais de 300 mil pessoas e inutilizou, destruindo a saúde mental, número semelhante. São mais de 600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil”, indigna-se.
Para elas, Carrano defende uma análise de cada caso por uma junta gratuita de advogados e o pagamento de indenizações. “Isto é fazer justiça social, ao contrário das esmolas sociais”, afirma.
Rets - O programa De Volta para Casa, lançado em 2003 pelo governo federal, foi bastante comemorado como uma iniciativa de reinserção das pessoas com transtornos mentais nas suas famílias. Você tem acompanhado a execução do programa? Como avalia?
Austregésilo Carrano - Em 2005, o programa tinha como objetivo atingir mais de 2.500 pessoas. Conseguiram repassar esta verba para pouco mais de 800. Isto porque é muito burocrático, exigente demais. Exige, por exemplo, que o usuário (paciente) tenha sido internado no mínimo por dois anos ininterruptos. Isto é um absurdo!
No meu caso, foram três anos e cinco meses de entra-e-sai em chiqueiros psiquiátricos. Eu, como milhares de outros, não teria o direito ao auxílio mínimo do programa De Volta para Casa. Nós, usuários e não-usuários que fomos violentados dentro dessas casas de extermínio, exigimos os mesmos direitos constitucionais que receberam os presos políticos na época da ditadura militar. Foram indenizados, e muito bem. Agora, para nós, vítimas psiquiátricas, e muitas em conluio com a ditadura militar, jogam um salarinho de fome e acham que a "dívida social" para conosco está saldada. Uma ova! Costumo citar o meu caso como exemplo de como esta experiência como cobaia psiquiátrica interferiu em minha vida.
Minha formação profissional foi anulada de forma estúpida por um erro médico-psiquiátrico. Três anos e meio de minha adolescência e de meu preparo profissional prejudicados. As seqüelas físicas e emocionais que abalam toda uma formação de comportamento, temperamento e efeitos em ações tomadas. Os preconceitos sociais enfrentados dia a dia, quando tomam conhecimento de seu histórico psiquiátrico, o que muitas vezes gera medo nas pessoas. Tudo somado leva ao preconceito agressivo, tanto físico como moral. Existem, assim, grandes chances de esses sobreviventes psiquiátricos serem levados ao isolamento social, ou seja, a uma destruição total do seu processo de reinserção, caso não tenha ajuda profissional como a que nós damos na Rede de Trabalhos Substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos Brasileiros. É por esses e outros danos que exigimos que nossos casos sejam analisados gratuitamente por uma junta de advogados. Os que forem julgados merecedores de indenizações, que tenham integralmente respeitados seus direitos constitucionais e sejam indenizados. Isto é fazer justiça social, ao contrário das esmolas sociais.
Rets - A integração da pessoa com transtorno mental à vida familiar e social é um dos pontos da luta antimanicomial, certo? Quais outros pontos você considera importantes e que deveriam ser prioridade?
Austregésilo Carrano - Perdemos algumas batalhas, como nossa luta pela proibição do eletrochoque, da eletroconvulsoterapia - ou ECT, como chamam esta Terapia do Terror. Na Europa, foi proibida. Nos estados norte-americanos que utilizam ainda esta arcaica e criminosa terapia, existem leis rigorosas de indenizações e até prisão do profissional pelos danos causados. Associações internacionais de sobreviventes da eletroconvulsoterapia lutam há anos pela proibição mundial dessa famigerada terapia. E aqui se faz campanha pela utilização do eletrochoque, alegam que os medicamentos não atingiram o esperado e retornam simplesmente a métodos antiquados e proibidos em muitos outros países mais evoluídos nesta coisa chamada de Psiquiatria. Omitem em seus artigos quais os medicamentos que foram utilizados, os que o governo doa gratuitamente ou as medicações consideradas de última geração, que custam uma pequena fortuna. Se for culpa dos medicamentos, isto é crime contra a sociedade, que está sendo enganada e roubada na compra desses medicamentos.
Quanto ao perigo do suicídio, existem técnicas, métodos, jeitinhos da sensibilidade humana, menos agressivos e cruéis, para tirar um usuário desse sintoma. Além disso, querem receber do Sistema Único de Saúde (SUS) R$ 400 por aplicação de eletroconvulsoterapia. Dez chifres queimados em uma hora são R$ 4 mil reais na conta, e mais uma teta enorme para se mamar do Ministério da Saúde. Como gostam de mamar esses meninos e meninas mestres do inconsciente, inconfundível, inalienável, do imaginável! É a terceira maior despesa dos SUS. Até os anos 90, era a primeira, com mais de U$ 1 bilhão por ano. Mama, neném, a fonte continua aberta, é só ter jeitinho!
Rets - Como tem avançado a questão das indenizações aos pacientes tratados com eletrochoques?
Austregésilo Carrano - Indenizações são para todos que foram torturados, aviltados e currados em seus direitos constitucionais de cidadãos, e não somente por quem já foi violentado por esta Terapia da Morte. Esta falsa psiquiatria que chamam de moderna há mais de 60 anos matou, somente no Brasil, mais de 300 mil pessoas e inutilizou, destruindo a saúde mental, número semelhante. São mais de 600 mil vítimas psiquiátricas somente no Brasil. Segundo dados da Comissão Internacional dos Cidadãos para os Direitos Humanos, as mortes causadas no mundo são em torno de 17 mil vítimas psiquiátricas em toda a sua história de terror.
Rets - Com relação ao processo jurídico contra você, em que pé está a questão agora? Você já está podendo falar o nome do médico que cuidou do seu caso?
Austregésilo Carrano - Estou com penhora de bens pelas condenações por supostas injúrias e calúnias contra os “médicos-mengeles” da psiquiatria. A corda da nossa Justiça ainda continua beneficiando o lado mais ditador e corrupto dos que têm poder econômico no Brasil. Dentro do histórico forense brasileiro, com mais de 600 mil vítimas entre mortos e sobreviventes, não existe nenhuma condenação ou indenização por erros, abusos, torturas e crimes psiquiátricos. Isto só pode significar que existe conivência e conluio judicial neste assunto. Imaginem se meu caso tivesse sido indenizado, o precedente jurídico que abriria para outros vitimados da psiquiatria também exigissem seus direitos constitucionais, o que lhes daria o direito de serem indenizados... Quantas fortunas psiquiátricas passadas de pai para filhos ruiriam... Lembrando uma frase de Mel Brooks: "Se fatura muito, mas muito mais, na psiquiatria que no rock and roll”.
Maria Eduarda Mattar. Colaborou Fausto Rêgo.
Uma publicação da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits)
www.rits.org.br

Texto anterior citado acima de maio de 2003

Denúncias do "maldito"
Sua história já foi contada em papel e película, mas nunca as palavras ou as cenas replicadas apagaram de Austregésilo Carrano Bueno as lembranças dos três anos e meio em que ficou internado em instituições psiquiátricas do Paraná. Neste período, foi submetido a 21 eletrochoques e a medicamentos pesados, que, como ele descreve, o deixaram em uma "prisão química". A revolta com o fato de ter sido torturado e aviltado e com a perda de anos da juventude foi canalizada para a elaboração do livro "Canto dos Malditos", que deu origem ao premiado filme "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodanzky. Apesar das denúncias e do sucesso da obra cinematográfica – ou por causa disso –, Carrano passou a ser alvo de ações judiciais que não só cassaram seu livro, mas querem impedi-lo de continuar fazendo as denúncias que ele vem verbalizando.
A primeira ação havia sido iniciada por ele próprio – "entramos com a primeira ação indenizatória por erro psiquiátrico na história forense brasileira", como gosta de lembrar – em 1998 e acabou tendo um desfecho contrário a Carrano: ele foi condenado a pagar R$ 60 mil. A segunda veio logo depois – iniciada por aqueles que chama de "lobby psiquiátrico" e pelos familiares dos psiquiatras que trataram dele – e conseguiu que o "Canto dos Malditos" fosse calado. A terceira terá julgamento no próximo dia 23 de maio, em Curitiba. Se derrotado, Austregésilo Carrano Bueno não poderá mencionar publicamente os nomes dos hospitais psiquiátricos e dos médicos contra os quais faz denúncias, sob pena de pagar R$ 5 mil por dia, ou ir preso.
Membro do Movimento da Luta Antimanicomial, Carrano, tanto quanto seus companheiros, teme que a possível condenação não seja só um ato de injustiça contra o autor, ou um cerceamento à sua liberdade de expressão. O receio é que a decisão represente, também, um retrocesso na batalha pela reforma psiquiátrica que exigem, como prevê a lei 10.216, de 2001. "É contra essa falsa psiquiatria financista e aviltante que nós do Movimento da Luta Antimanicomial lutamos", diz Carrano, em entrevista exclusiva à Rets onde fala abertamente sobre os interesses econômicos que estão por trás de suas condenações e da permanência do modelo, segundo ele, arcaico dos hospitais psiquiátricos brasileiros. O autor fala ainda das seqüelas físicas e psicológicas que os anos de internação lhe deixaram, sobre como se voltou para a área da cultura, a necessidade de punir devidamente os erros de psiquiatras (o que a legislação não prevê atualmente), as condições subumanas de dentro dos hospícios e sobre como foi reviver a sua história depois do lançamento do filme. "Não assisto mais. É muita emoção", diz ele.
[No final da entrevista, há informações sobre como se mobilizar para ajudar Austregésilo Carrano Bueno, no julgamento do dia 23.]
Rets - Você vai ser julgado no próximo dia 23 de maio. Qual é a acusação? Quem move a ação contra você?
Austregésilo Carrano Bueno - Essa é a terceira ação contra mim. A primeira foi quando eu entrei com a primeira ação indenizatória por erro psiquiátrico na história forense brasileira. Isso foi em 13 de maio de 1998, ou seja, há cinco anos. Acabei sendo condenado a pagar R$ 60 mil aos meus torturadores, aos donos das instituições psiquiátricas onde fiquei confinado, sendo cobaia. Em 1999, por pressão do lobby psiquiátrico, prescreveram minha ação – o que foi inconstitucional: eu era menor e crime de tortura contra menor não prescreve. Por exemplo, se você tem 18 ou 19 anos, atropela alguém, quem responde é o seu pai, sua mãe. Ou seja, abaixo de certa idade, você é tratado de modo diferente. Comigo não foi assim. Por quê?
Agora, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh – que também é deputado federal – pegou a primeira ação e levou para Brasília, para o Superior Tribunal Federal. Levou também a segunda ação que foi movida contra mim – a cassação do meu livro, que foi julgada em abril de 2001. Na verdade, a primeira ação puxou a outra: eles se sentiram vitoriosos tendo uma decisão favorável na primeira ação e se acharam no direito de me processar por injúria e difamação. Ainda mais depois do sucesso estrondoso do filme "Bicho de Sete Cabeças", que recebeu 43 prêmios nacionais e oito internacionais. Meu livro acabou sendo cassado em 2001. Foi a primeira vez que uma obra literária foi cassada desde a ditadura.
Agora, no próximo dia 23, vou ser julgado pela terceira vez, também por acusações desse lobby psiquiátrico. Eles querem que eu fique calado e não mencione em público ou na imprensa o nome do Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro – primeiro onde fui internado –, da Federação Espírita do Paraná – que é dona do Bom Retiro –, ou os nomes dos médicos-psiquiatras que me torturaram (como o nome do doutor Alexandre Ceshi, que hoje em dia é o diretor do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro. Eu já havia sido paciente dele em outro hospital psiquiátrico em que fui internado, o Hospital Neuropsiquiátrico do Paraná, conhecido como San Julian). Caso contrário, toda vez que eu mencionar, exigem R$ 5 mil por dia de indenização ou que eu seja preso.
Serei julgado na 5º Vara Cível do Fórum de Curitiba, capital do Paraná, pelo Juiz de Direito Dr. Sigurd Roberto Bengtsson. E, como já fui condenado nos outros dois processos e todos esses processos estão interligados, as minhas chances são muito pequenas, a não ser que eu consiga um apoio popular nacional muito grande.
Rets - Que interesses estão por trás da exigência de seu silêncio nestes processos judiciais?
Austregésilo Carrano Bueno - Os hospitais psiquiátricos são especializados em loucura, e não na cura. É uma questão que envolve interesses econômicos altíssimos. Trata-se da terceira maior despesa do SUS, uma verdadeira mina de ouro que ultrapassa meio bilhão de reais por ano. Consomem mais de R$ 700 milhões para drogar, torturar e matar pessoas. É pura exploração financeira dos nossos impostos, é roubalheira, falcatrua da mais grosseira e aviltante a nós, contribuintes. Esta hotelaria em hospitais psiquiátricos é arcaica. Por contrato, o SUS paga automaticamente o mínimo de 35 dias. A internação é prorrogada, também automaticamente, pelo contrato.
A revisão desse contrato dos hospitais psiquiátricos com o SUS é de extrema urgência. É falcatrua esse contrato onde o benefício econômico vai direto para os empresários da loucura, os donos e sócios de hospitais psiquiátricos. Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos (que nós defendemos no Movimento Antimanicomial) – montada no mais simples município do Brasil, com qualidade, respeito, humanização, reintegração e muito convívio social e o resgate dos direitos totais de cidadão – irá consumir apenas 50% do custo que é pago em hotelaria em hospitais psiquiátricos.
Rets - Você recebe ameaças?
Austregésilo Carrano Bueno - Já recebi, sim. Coisas como "você está estimulando as pessoas a processarem os hospitais e psiquiatras". E eu: "Quem está falando?". Não respondiam. Ou coisas como "quando você sair à rua, olhe para trás". Mas eu não vou parar.
Rets - Uma vez você declarou que o livro não foi escrito para prejudicar nenhum médico em especial, mas para denunciar aquilo que chamou de “tortura da falsa psiquiatria”, ajudar na luta pela reforma psiquiátrica e exigir indenização justa para as vítimas. Que resultados já foram obtidos na Justiça?
Austregésilo Carrano Bueno - O meu livro não foi feito para prejudicar nenhum psiquiatra. Foi para mostrar o que se passa dentro dos hospitais psiquiátricos. É um livro com pele, real, onde boto o nome da minha família. Assim, acaba mencionando nomes das pessoas que estiveram envolvidas com o que eu passei. A partir daí, usaram os diálogos dos pacientes no livro para argumentar que eu estava denegrindo a imagem dos psiquiatras citados. Mas não é.
A minha intenção é dizer: "Olhem, tá acontecendo isto aqui". É um grito de socorro. O livro pede que as pessoas olhem para a situação em que indivíduos ficam à mercê de receitas de psiquiatras. Aliás, psiquiatras cometas. Chamava de cometas os médicos que nos atendiam, pois passavam poucos minutos por dia nos hospitais. O resto do tempo ficávamos com enfermeiros, técnicos em enfermagem e, às vezes, com pessoas que nem isso eram. Eram simplesmente pessoas do bairro ou da região contratadas para trabalharem ali, sem nenhum preparo para isso. Não sou contra a psiquiatria, a saúde mental. Sou contra esse modelo arcaico, cruel e criminoso que vem se aplicando no Brasil, que é você confinar pessoas em hospitais psiquiátricos.
Quanto aos resultados práticos, dentro do histórico forense brasileiro, não existe ação como a que eu iniciei. Alguém tem que levantar esta bandeira. Essa perseguição indecente – como classifico o que estão fazendo comigo – só faz chamar mais atenção para a questão. Quanto mais me perseguem, mais chama atenção para o que tem que mudar.
Rets - Fica claro que você atribui a erros de psiquiatras o fato de ter sido internado. Mas você guarda algum tipo de ressentimento de seu pai? [Foi o pai de Carrano quem decidiu interná-lo. Depois de descobrir que o filho fumava maconha, ele pediu conselho a um amigo, que recomendou a internação. No hospital psiquiátrico, o diagnóstico médico foi de esquizofrenia]
Austregésilo Carrano Bueno - No meu caso, tinha 17 anos, ia prestar vestibular para comunicação. Toda aquela fantasia, aquela esperança. Hoje poderia estar aí, ser seu colega de trabalho. Mas não. De repente você cai dentro de um chiqueirão onde é tratado em condições subumanas. Tudo aquilo me foi tirado, cortado. Me deixaram urinando e defecando em mim mesmo. E tudo por causa de um baseadinho, que é normal um jovem experimentar.
Na legislação sequer se toca na questão do erro médico-psiquiátrico. Isso faz com que não tenhamos juízes aptos para julgar esses casos, nem advogados especializados. A decisão do psiquiatra não é questionada, ele fica como o todo poderoso enquanto o judiciário fica de braços cruzados. As pessoas não vêem o que acontece dentro desses hospitais psiquiátricos: tem estupros, assassinatos, pessoas se escondem para enganar a Justiça... E essa é minha luta, é mostrar o que acontece lá dentro. Por que crime psiquiátrico, no Brasil, não é punível?
É ignorância do nosso Judiciário com as questões referentes aos métodos usados e abusados dentro das nossas instituições psiquiátricas
Rets - Falando dos aspectos de saúde, você foi vítima de eletroconvulsoterapia. Que conseqüências e seqüelas pode deixar nas pessoas? Isso é usado ainda hoje nos hospitais psiquiátricos?
Austregésilo Carrano Bueno - É, sim. Agora, em 10 de julho de 2002, teve sua aprovação pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) para uso irrestrito, dependendo apenas da opinião do psiquiatra para a sua aplicação. Um atraso nas questões da reforma psiquiátrica que defendemos. Esta é a explicação técnica da voltagem do eletrochoque: “Eletroconvulsoterapia (ECT) é aplicada nas têmporas na freqüência de ondas quadradas que varia de 25 mil Coulombs até 500 mil Coulombs, de cada pulso elétrico de 0,5, 1,0 ou 2,0 millissegundos, duração que varia de 0,2 a 0,8 segundos”. Na prática, é a fritura do cérebro. E agora, aqui no Brasil, incentivamos uso irrestrito nos nossos pacientes. No papel há algumas exigências que sabemos que não serão cumpridas.
A volta da eletroconvulsoterapia irá torturar, traumatizar, inutilizar e até matar. E o real interesse da volta da aplicação do eletrochoque em nossas instituições psiquiátricas é apenas um: engordar as contas bancárias. O SUS vai pagar ao profissional psiquiatra as aplicações de eletroconvulsoterapia, mais uma fonte de renda fácil. Isto é um absurdo e um crime. É risco de vida a qualquer paciente que hoje estiver internado em algum hospital psiquiátrico no Brasil. Isto é muito sério. Na época em que estive internado, faziam-se muitas experiências com seres humanos com o uso do eletrochoque. Era época da ditadura militar, onde muitos presos políticos e indesejáveis ao sistema ditador desapareceram dentro das instituições psiquiátricas, morreram ou ficaram abobados, irrecuperáveis pela queima de neurônios pelo uso do eletrochoque.
O tratamento pode fraturar o fêmur, a coluna, o maxilar; provocar lesões cerebrais irrecuperáveis, em grande parte pela queima e fritura de neurônios; parada cardíaca nas aplicações; e levar a morte. São dados provados cientificamente. Este tratamento, somado à prisão dupla a que somos submetidos – a física e a química –, nos tira a razão, e muitos de nós somos transformados em verdadeiras bestas humanas, não sabemos mais quem e o que somos. Outro risco constante é a perda total da sua razão. O mais grave é que a aplicação desse terrível meio de tortura depende apenas da vontade do psiquiatra.
Foram 21 eletrochoques aplicados em mim, a seco, numa voltagem de 180 watts, podendo chegar a 460 watts.
Rets - Dentre choques, maus tratos, desprezo, tortura e demais situações que passou enquanto esteve internado, o que mais te aviltou – se é que é possível apontar alguma coisa em particular? Ou seja, o que mais te causa revolta, que lhe foi roubado e você não poderá recuperar de maneira nenhuma?
Austregésilo Carrano Bueno - Tem uma frase do Rodolfo Konder [que foi exilado duas vezes durante a ditadura, tornando-se depois jornalista, cronista, chegando a ser Secretário de Cultura de São Paulo], quando entrevistado pelo Amaury Jr., este tinha perguntado ao Rodolfo se, depois de ter feito tanta coisa, de ter sido tanta coisa, se ele não se cansava. Ele respondeu: "Amaury, quando se é torturado, você não esquece". Tem vezes em que eu fecho os olhos e me vejo trancado no quarto, amarrado, com o enfermeiro vindo tirar esparadrapo da minha perna, eu cuspindo nele e ele me dando tapa na cara. São coisas que você não esquece. Eu perdi minha juventude, a fantasia que tinha na época, aqueles momentos da minha vida. Durante anos, uns cinco anos, as pessoas chegavam na minha casa e eu me escondia, tinha medo. Fora isso, tem as seqüelas físicas. Tenho só 12 dentes na boca, uma fissura na base craniana, perdi parte da visão. São coisas que a gente não esquece nunca.
Rets - Mas, só falando com você, não parece que você tenha seqüela nenhuma.
Austregésilo Carrano Bueno - Graças a Deus eu tenho bom humor. Sou artista, formado em Artes Cênicas pelo curso do Teatro Guaíra de Curitiba. Dirigi minha revolta para outras coisas, para a luta antimanicomial, para escrever.
Rets - Falando nisso, você canalizou sua revolta com o que passou para a luta antimanicomial e para a literatura, a cultura, já tendo publicado dois livros. Está preparando mais algum? Todos eles abordam a temática dos hospitais psiquiátricos e da reforma psiquiátrica?
Austregésilo Carrano Bueno - Depois de "O Canto dos Malditos", publiquei um segundo livro, chamado "Textos - Teatro", de 1994, que são seis peças para teatro. Não é vendido em livrarias por falta de editoras que se interessem por livros de peças de teatro. Deste livro, três peças já foram montadas e um texto foi premiado na ECO 92, onde competi com o texto “Vamos Acabar com a Natureza”.
Estou escrevendo o terceiro livro, "Filhos da noite", que é uma ficção baseada em fatos reais. Trata-se de uma prostituta que se envolve com um garoto de programa. A partir daí, o livro conta o que se passa na noite de uma grande cidade, como São Paulo, Curitiba, Brasília etc. O livro aborda questões como prostituição infantil e tráfico de drogas. E depois fala também da vida dentro de uma delegacia (não dentro de um presídio, como fez "Carandiru"). A vida lá é horrível, eu sei, pois cheguei a ser preso em brigas de juventude. São 30, 40 pessoas presas dentro de uma cela de delegacia e acabam passando três, quatro anos lá dentro, em lugares que não são desenhados para isso. Devo lançar no final desse ano.
Rets - Você gostou do filme “Bicho de Sete Cabeças”?
Austregésilo Carrano Bueno - Gostei muito do filme, é maravilhoso. É um trabalho de sensibilidade muito grande da Laís Bodanzky. Meu livro é um lago, e ela conseguiu pescar os aspectos mais importantes. É um trabalho difícil de expor uma realidade pouco familiar às pessoas. E ela fez muito bem, as pessoas acabam o filme tendo vivenciado, acreditando na história. A Laís teve muita sensibilidade.
Rets - Como foi a sensação de reviver todo esse sofrimento ao assistir ao filme?
Austregésilo Carrano Bueno - Eu me emociono muito. Normalmente, dou palestras pelo país, em universidades etc. E costuma-se passar o filme primeiro e só depois acontece a minha palestra. Eu saio, não assisto mais. É muita emoção.
Rets - Quais são os principais pontos da Reforma Psiquiátrica e da lei federal 10.216, de 2001 (que prevê a extinção progressiva dos manicômios) – duas das principais bases do Movimento da Luta Antimanicomial?
Austregésilo Carrano Bueno - Somos a favor da Rede de Trabalhos Substitutivos, montada há mais de 14 anos e apoiada pela Organização Mundial da Saúde. As pessoas não seriam internadas, a não ser quando estivessem em crise ou surto. A internação seria em leitos de hospital geral, por no máximo sete dias. Somos a favor dos hospitais-dia, aonde as pessoas que precisam de tratamentos de saúde mental vão durante o dia e voltam para suas casas à noite. Defendemos ainda a criação e utilização dos Naps e Caps (Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial), que não são hospitais psiquiátricos, são casas alugadas longe, fora do espaço físico dos hospitais psiquiátricos, nada que lembre um hospício. O paciente, chamado de usuário, é levado a passar o dia. Acompanhado por equipes de interprofissionais, à noite retorna ao convívio familiar e social. As pessoas que não estão em crise poderiam ficar, socializar-se, almoçar, namorar, politizar-se, receber a atenção adequada de psicólogos, assistentes sociais etc. Ou seja, poderiam receber um tratamento digno. Queremos ainda a criação de Centros de Convivência e Cooperativas, que funcionam em parques, praças e centros culturais, onde a produção artística e cultural dos pacientes pode ser vendida e o lucro é dividido entre eles, os usuários. Queremos ainda o atendimento de psiquiatria e psicologia em postos de saúde. Esses são os pontos principais.
Só se deve internar quando a pessoa está em crise, e existe uma definição para isso: é quando a pessoa está colocando em risco a vida dela ou a de terceiros. Agora, se a pessoa está falando da lua, ou diz que acabou de falar com o [Ayrton] Senna, ela não está prejudicando ninguém, nem a ela mesma. Então, por que internar, prender? Precisamos aprender a conviver com as diferenças. Só que, como sempre, esbarra-se nos donos de hospitais psiquiátricos, que são a terceira maior receita do SUS, aquela história. Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos aos hospitais psiquiátricos, montada no mais simples município do Brasil, com qualidade, respeito, humanização, reintegração e muito convívio social, e o resgate de seus direitos totais de cidadão irão consumir apenas 50% do custo que é pago em hotelaria em hospitais psiquiátricos. Por isso os donos de hospícios são contra essa rede, pois iremos tirar a galinha dos ovos de ouro, que é a hotelaria em hospitais psiquiátricos por longos meses. Nas nossas internações no caso de crise/surto, são apenas sete dias e não o mínimo de 35 dias acordado com o SUS.
É contra essa falsa psiquiatria financista e aviltante que nós do Movimento da Luta Antimanicomial lutamos. Não contra a verdadeira psiquiatria, que se preocupa em tratar, respeitar, valorizar e lutar para sociabilizar o paciente. Segundo dados do Ministério da Saúde, 80% dos pacientes internos em hospitais psiquiátricos morrem lá dentro ou viram moradores condenados, como numa prisão perpétua. Em 1998, junto com representantes da Assembléia Legislativa de São Paulo, nós do Movimento da Luta Antimanicomial denunciamos 30 mil covas clandestinas na Colônia Psiquiátrica do Juqueri em São Paulo. Covas com quatro, cinco tipos de esqueletos, ossos de pernas, cabeça e outros membros ósseos de outros corpos.
Rets - O que está sendo feito e como as pessoas podem contribuir para que você não seja condenado no dia 23?
Austregésilo Carrano Bueno - É evidente que, se eu for o vencedor desta ação, abriremos um precedente para as centenas ou milhares de vítimas desses empresários da loucura. Os interesses superam a minha indenização, eles são também muitos outros. O que se pode fazer para reverter esta perseguição indecente que o lobby da psiquiatria e familiares dos mesmos vêm fazendo em cima da minha pessoa e de minha obra? Pode divulgar ao máximo esse absurdo. Enviar e-mail, cartas, telegramas, telefonemas, abaixo-assinados repudiando essas ações e condenações impostas a mim à 5ª Vara Cível do Fórum de Curitiba, ao presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, para ONGs nacionais e internacionais, associações de direitos humanos. Como serei julgado na 5º Vara Cível do Fórum de Curitiba, seria muito interessante enviar e-mail para a Presidência do Tribunal de Justiça do Paraná. O endereço é prestj@tj.pr.gov.br.
Quem quiser fazer abaixo-assinados deve encaminhá-los para o seguinte endereço: Rua José Culpi, nº 437, Santa Felicidade, Curitiba, PR, CEP 82400-370. O ideal é que se faça isso antes da data do julgamento. Fico aberto a sugestões que possam nos ajudar nessas ações e também para acharmos alguma maneira de sensibilizar o jurídico nacional e abrirmos precedentes na questão forense brasileira, cobrando responsabilidades aos crimes psiquiátricos. Para quem quiser consultar os meus processos, os números são: 1º ação, em que fui condenado a pagar sessenta mil reais: Ação nº 154970-0/02, segunda instância, Tribunal de Justiça do Paraná (estamos tentando levar o processo para o Supremo Tribunal Federal, em Brasília). A 2º ação, onde cassaram minha única fonte de renda, o livro “Canto dos Malditos”, é de nº 154/2001 e está na 8ª Vara Cível, Fórum de Curitiba, Paraná. A 3ª ação, proibindo meu direito à liberdade de expressão oral e escrita em qualquer meio de comunicação, tem o nº 839/2001 e será julgada na 5º Vara Cível, às 14 horas do dia 23. O juiz responsável pelo julgamento será o Dr. Sigurd Roberto Bengtsson.

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