Publico aqui um assunto que há tempos me instiga, o da ciência musica, coloquei aqui um artigo que li achei suficientemente interessante para colocá-lo aqui.
Música e Ciência: Ambas filhas de um ser fugaz
Ildeu de Castro Moreira1, Luisa Massarani21 Instituto de Física e Área Interdisciplinar de História da Ciência e das Técnicas e Epistemologia, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, icmoreira@uol.com.br2 Centro de Estudos, Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz, cestudos@coc.fiocruz.br,www.museudavida.fiocruz.br
Palabras clave: ciência e música; letras musicais; divulgação científica.
As relações entre ciência e música são muito profundas e têm suas raízes no próprio surgimento da ciência moderna. A música tem uma base física importante: são os sons afinados pela cultura que a constituem. Por outro lado, ela foi utilizada muitas vezes como metáfora e como inspiração para interpretar o mundo físico, em particular nos modelos cosmológicos. Este artigo explora, de forma preliminar, como surgem e se expressam temas e visões sobre a ciência, a tecnologia e seus impactos na vida moderna nas letras de canções da música popular brasileira. O objetivo primordial do trabalho – que constitui uma análise qualitativa não-exaustiva – é proceder a um mapeamento inicial de como temas de ciência, atividade social imersa em determinado contexto cultural, podem surgir na manifestação das artes populares, neste caso a música brasileira.
1. Introdução
A música é uma das artes mais ligadas à matemática e à física. Até os albores do século XVI, ela era considerada um ramo da matemática. No período medieval constituía uma de suas disciplinas, integrando o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música. Tomava-se, então, como música os seus aspectos teóricos sem ligação direta com sua execução prática. Ela é uma arte escorada em medidas precisas, o que garante nova aproximação com a ciência, e tem uma base física importante: são os sons afinados pela cultura que a constituem. Por outro lado, ela foi usada muitas vezes como metáfora e como inspiração para interpretar o mundo, em particular nos modelos cosmológicos, ou em tentativas descritivas da estrutura da sociedade humana. Se as descobertas científicas e os avanços técnicos estimularam mudanças e transformações na música em muitos aspectos, o oposto também se verificou. Em diversos períodos da história questões emanadas da música estimularam a investigação científica. Especulações sobre a natureza musical do universo remontam a milênios atrás. A harmonia musical do cosmo já é mencionada, por exemplo, no Timeu de Platão. Aristóteles criticou essas idéias, mas a concepção de uma harmonia universal no mundo físico perdurou por séculos nas visões cosmológicas e foi forte inspiradora para que Kepler chegasse a suas leis sobre o movimento dos planetas. Além das relações gerais já apontadas entre música, física e matemática, alguns outros aspectos emergem nas suas relações com a ciência: a construção de instrumentos musicais, que guarda ligação direta com o conhecimento físico e tecnológico da matéria e da acústica; as relações profundas entre o tempo, um conceito central da ciência moderna, e a música, seus ritmos e freqüências; o comportamento sonoro, que inspirou modelos para a descrição da luz e que possibilitou posteriormente avanços importantes nos meios de comunicação; as mudanças profundas que a ciência e a tecnologia possibilitaram na reprodução em massa das obras de arte, aqui incluída a música; as conexões culturais mais amplas, subjacentes tanto à música como à ciência, duas componentes da atividade criativa humana, individual ou coletiva. Do lado da história da arte e da história da ciência é importante destacar que, enquanto ocorria o processo que se denominou de revolução científica nos séculos XVI-XVII, surgia também uma profunda transformação na música, originada da transformação da prática artística. Como destacam Claude Palisca (1992) e Stillman Drake (1992), houve profundas conexões entre física e música naquele período em que emergia uma visão nova sobre a natureza e o homem. Nosso objetivo neste artigo é muito mais restrito do que a análise das implicações gerais da relação entre ciência e música. Ele explora, de forma preliminar, um aspecto dessa relação complexa entre ciência e música: como, nas letras de canções da música popular brasileira, surgem e se expressam temas e visões sobre a ciência, a tecnologia e seus impactos na vida moderna. Examinamos letras de diversas canções sem nos preocupar com os outros elementos do discurso musical. Isso é evidentemente uma limitação forte, já que a música guarda uma integralidade entre a harmonia, o ritmo e as palavras. A aliança texto–música é matéria das mais antigas e sensíveis no campo da arte. Por isso, analisar somente os aspectos informativos e poéticos das letras musicais significa uma atitude redutora e um risco latente. Por exemplo, a análise das harmonias e ritmos, que sequer é tentada aqui, proporcionaria outras oportunidades para estudo da conexão música–ciência (Wisnik, 1999). Apesar dessa limitação, acreditamos que estudos como o nosso podem ajudar a investigar como temas de ciência e tecnologia estão presentes no imaginário de compositores. Como lembra também Maria Izilda de Matos (2006), a produção musical pode ser vista como um corpo documental, uma fonte particularmente instigante para a historiografia, já que por muito tempo embalou boêmios, artistas populares e sambistas, entre outros. Essa autora destacou que a música é pouco explorada pela análise histórica e como instrumento com potencial didático. A análise das letras musicais pode ser um interessante momento para um exercício interdisciplinar, ainda mais que a música carrega elementos motivadores com potencial para despertar o interesse por determinado tema ou acontecimento.
2. Uma classificação preliminar
Apresentaremos, no que se segue, trechos de letras de músicas provenientes do acervo da música popular brasileira, desde quando elas começaram a ser gravadas, no início do século passado. Consideraremos letras musicais que se referem de alguma forma a temas, conceitos, visões ou atitudes diante da ciência, da tecnologia e de seus impactos sobre os indivíduos e sobre a sociedade. No sentido de facilitar a análise, agrupamos tentativamente as letras examinadas de acordo com as seguintes categorias: (1) tratam de cientistas ou inventores brasileiros importantes, como Cesar Lattes ou Santos Dumont; (2) exploram ou têm como mote conceitos ou teorias científicas, como aquelas que se referem ao quantum de energia, ao DNA, aos fractais e aos conceitos fundamentais de tempo e espaço; (3) mencionam e/ou se referem a conceitos e teorias científicas de forma secundária ou incidental, como várias músicas populares que usam como metáforas conceitos ou termos científicos de seu tempo – vacina, micróbio, penicilina etc. – para aplicá-los em diversos contextos e situações da vida social ou sentimental; (4) referem-se a eventos científicos ou tecnológicos marcantes, como a passagem do cometa Halley, a explosão da bomba atômica ou a chegada do homem à Lua; (5) abordam impactos diversos na vida social e individual decorrentes de avanços tecnológicos, como a vacinação obrigatória ou a introdução de aparatos tecnológicos diversos – a televisão, o computador, a internet etc.; (6) criticam ou ironizam conseqüências dos usos da ciência e da tecnologia, como aquelas referentes à influência da tecnologia sobre o meio ambiente ou ao impacto nefasto da bomba atômica; (7) acompanham enredos carnavalescos que abordam temas de ciência e tecnologia, como o samba-enredo da escola de samba Unidos da Tijuca em 2004. Essa classificação é evidentemente superficial e é necessário aprimorá-la. Note-se que as fronteiras entre as categorias aqui apresentadas não são muito precisas; várias letras musicais mencionadas a seguir poderiam se enquadrar em mais de uma delas. Apesar disso, essa listagem pode ser útil como uma primeira tentativa classificatória ou pelo menos como um artifício didático para o acompanhamento deste texto. As letras de música selecionadas a seguir são apenas alguns exemplos possíveis; muitas outras escolhas poderiam ter sido feitas. Nosso objetivo é destacar que uma análise da música popular, uma expressão artística tão forte no Brasil, pode conduzir a interessantes questionamentos sobre a relação entre ciência e cultura no país.
2.1 Cientistas ou inventores brasileiros importantes
Um samba emblemático foi "Ciência e Arte", de Cartola e Carlos Cachaça, composto em 1948 para a Mangueira. Destaca a obra do artista Pedro Américo e do físico Cesar Lattes, que, na época, ganhou as páginas de jornais e revistas por causa de sua participação decisiva na descoberta do méson pi:
Tu és meu Brasil em toda parte/ Quer na ciência ou na arte/ Portentoso e altaneiro/ Os homens que escreveram tua história/ Conquistaram tuas glórias/ Epopéias triunfais/ Quero neste pobre enredo/ Reviver glorificando os homens teus/ Levá-los ao Panteon dos grandes imortais/ Pois merecem muito mais/ ... Cientistas tu tens e tens cultura/ E neste rude poema destes pobres vates/ Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes.
Nessa mesma linha, temos a marcha de Eduardo das Neves, "A Conquista do Ar", composta para homenagear Santos Dumont. Ela alcançou grande sucesso na época e recebeu várias gravações posteriores. Sua letra é típica do ufanismo que galvanizou o país em torno dos feitos do inventor:
A Europa curvou-se ante o Brasil/ E clamou "parabéns" em meio tom./ Brilhou lá no céu mais uma estrela:/ Apareceu Santos Dumont ... / A conquista do ar que aspirava/ A velha Europa, poderosa e viril,/ Quem ganhou foi o Brasil! / Por isso, o Brasil, tão majestoso,/ Do século tem a glória principal:/ Gerou no seu seio o grande herói/ Que hoje tem um renome universal. / Assinalou para sempre o século vinte/ O herói que assombrou o mundo inteiro:/ Mais alto que as nuvens. Quase Deus,/ Santos Dumont – um brasileiro.
Muitas outras composições – hinos, marchas e sambas – foram dedicadas posteriormente a esse personagem heróico. No acervo musical da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (Brasil), pode-se encontrar pelos menos uma dúzia delas. Mencionemos duas: uma é a marcha "Santos Dumont", de 1956, composição de Ataulpho Alves e Aldo Cabral. Outra homenagem é o samba-enredo de 2006 da escola de samba Unidos do Peruche, de São Paulo, que tem o título "Santos Dumont... Brasil e França navegando pelos ares". Um conjunto musical que abordou a atividade de um cientista foi o Grupo Rumo. Em sua longa "A incrível história do dr. Augusto Ruschi, o naturalista e os sapos venenosos", escrita por Paulo Tatit (Álbum "Quero passear", 1988) e destinada a crianças e adolescentes, destacou-se a atividade preservacionista de Ruschi. Na sua segunda parte, descreve-se o envenenamento do cientista por sapos venenosos e envereda-se por uma senda de valorização de conhecimentos tradicionais indígenas, que teriam proporcionado sua cura:
Ele era naturalista porque gostava da natureza, estudava a natureza, entendia os bichos, as matas, as formigas, os passarinhos... e defendia a natureza! Não deixava ninguém derrubar árvores, queimar florestas, poluir rios, matar e arrancar a pele dos animais, não deixava ... / Dr. Augusto Ruschi, o naturalista, envenenado! Ai, ai, ai. Tentou os hospitais, as farmácias e drogarias, consultou médicos, falou com cientistas, especialistas, tomou remédio, fez dieta, fez de tudo, mas nada, nada, nada adiantava./E veio o cacique Raoni. E veio o pajé Sapaim ... Fumaram cigarros, deram banho de ervas, esfregaram as mãos, fizeram massagem... retiraram o veneno... curaram!
2.2 Conceitos e teorias científicas
Augusto dos Anjos já entronizava na poesia, com extrema habilidade, termos científicos e discussões de seu tempo – evolução e comportamento do cérebro, por exemplo. Na música de Gilberto Gil, "Quanta" (1995), ganhou espaço um conceito fundamental e complexo da física moderna: o quantum, introduzido por Planck como um artifício matemático no início do século XX, posteriormente estendido e tomado mais a sério por Einstein:
Quanta do latim/ Plural de quantum/ Quando quase não há/ Quantidade que se medir/ Qualidade que se expressar / Fragmento infinitésimo/ Quase que apenas mental/ Quantum granulado no mel/ Quantum ondulado do sal/ Mel de urânio, sal de rádio/ Qualquer coisa quase ideal / Cântico dos cânticos/ Quântico dos quânticos/ ...
A beleza da matemática e da física, em particular dos fractais, atraiu César Nascimento e Alê Muniz ("Fractal", 1995). Eles dedicaram sua composição "à bravura e criatividade dos cientistas da América Latina":
Fractal pode ter beleza/ Fractal, apesar da certeza/ Fractal, ô, ô, revela beleza/ Dando se tira que em todo aço,/ Até no mais puro traço,/ Existe um momento tal,/ Existe um momento-flor/ Que poderá vir a ser fractal/ Traço um traço ao lado do traço/ Na diagonal da diagonal/ Fractal/ Uma fractal pode ter beleza/ Apesar da certeza/ Uma fractal pode ter.
Já Marisa Monte procura ciência nas coisas e lança mão de átomos em "A Alma e a Matéria", composição em parceria com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes:
Procuro nas coisas vagas ciência/ Eu movo dezenas de músculos para sorrir/ Nos poros a contrair, nas pétalas do jasmim/ ... Procuro na paisagem cadência/ Os átomos coreografam a grama do chão/ Na pele braile pra ler na superfície de mim/ Milímetros de prazer, quilômetros de paixão/ ...
Em "Átimo de pó", de Gilberto Gil e Carlos Rennó (1995), brincou-se com o som e a rima de palavras relacionadas à ciência:
Entre a célula e o céu/ O DNA e Deus/ O quark e a Via-Láctea/ A bactéria e a galáxia Entre agora e o eon/ O íon e Órion/ A lua e o magnéton/ Entre a estrela e o elétron/ Entre
o glóbulo e o globo blue / Eu, um cosmos em mim só/ Um átimo de pó/ Assim: do yang ao yin / Eu e o nada, nada não/ O vasto, vasto vão/ Do espaço até o spin/ ...
Na literatura poética universal, o tempo é um dos temas mais recorrentes, pela vinculação óbvia com a vida e a morte (Moreira, 2002). Na música, o tema também surge freqüentemente. Uma busca no site Rádio Terra, que reúne muitas composições, identifica 235 canções sob a palavra-chave 'tempo'.1 Mencionemos apenas uma. Caetano Veloso dedicou ao tema a sua bela "Oração ao Tempo" do disco "Outras palavras" (1981):
... Compositor de destinos/ Tambor de todos os ritmos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Entro num acordo contigo/ Tempo, tempo, tempo, tempo / Por seres tão inventivo/ E pareceres contínuo/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ um dos deuses mais lindos/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ ...
Uma canção na qual o espaço sideral surge como inspiração inicial e que se volta para a descrição da natureza e suas maravilhas, exemplificada aqui pelo trecho relativo ao poraquê, foi composta por Ivanildo Vilanova e Xangai ("Natureza", LP "Mutirão da vida", 1984):2
É o céu uma abóbada aureolada/ Rodeada de gases venenosos/ Radiantes planetas luminosos/ Gravidade na cósmica camada/ Galáxia também hidrogenada/ Como é lindo o espaço azul-turquesa/ ... Quem de nós pensaria apagá-la/ Só o santo doutor da natureza/ ... O poraquê ou peixe-elétrico é um tipo genuíno/ Habitante dos rios e águas pretas/ Com ele possui certas plaquetas/ Que o dotam de um mecanismo fino/ Com tal cartilagem esse ladino/ Faz contato com muita ligeireza/ Quem tocá-lo padece de surpresa/ Descarga mortífera absoluta/ Sua auto-voltagem eletrocuta/ Com os fios da santa natureza ...
Termos e conceitos da biologia foram explorados no humor do grupo Casseta & Planeta em "Mitocôndria" (1994):
Todos vieram de lá. Ah! (bis)/ Mitocôndria, aparelho de Golgi/ Ribossoma e membrana celular./ Todos vieram de lá ô, ô, do DNA, á, á (bis)/ Passando por microvilosidades e
anticorpos,/ As impurezas do organismo/ Vão sendo absorvidas, absorvidas, absorvidas/ Purinas, pirinas e pirimidinas,/ Fosfatos, glicídios e as vitaminas,/ Combatendo as "toquicinas"/ Ribonucléico, desoxirribonucléico! (bis)/
Algumas letras abordam temas mais gerais da ciência, como "A Ciência em si", de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes (1995). Ela integra o repertório do disco "Quanta", de 1997, que tem a ciência e a tecnologia como fonte de inspiração em várias das canções:
Se toda coincidência/ Tende a que se entenda/ E toda lenda/ Quer chegar aqui/ A ciência não se aprende/ A ciência apreende/ A ciência em si/ ... Se toda estrela cadente/ Cai pra fazer sentido/ E todo mito/ Quer ter carne aqui/ A ciência não se ensina/ A ciência insemina/ A ciência em si/ ...
2.3 Conceitos, teorias e termos da ciência mencionados secundariamente
Os invisíveis micróbios constituíram um tema de inspiração para a verve de vários compositores, a exemplo do samba "Micróbio do samba" (1942), de Amado Régis, e da marcha "Micróbio da feiúra" (1944), de Albertino Miranda, Arlindo Matilde e Nelson Trigueiro. Os efeitos desses minúsculos seres são sentidos também em "Micróbio do frevo" (lançado em 1954), interpretado por Jackson do Pandeiro, composição de Genival Macedo:
Eu só queria que um dia,/ O frevo chegasse a dominar,/ Em todo Brasil,/ O micróbio do frevo é de amargar,/ Quando entra no salão é que,/ O povo prefere pra dançar,/ E cai na dobradiça, não há quem faça para
Caetano Veloso em sua canção "Livro" falou da radiação do corpo negro e da expansão do universo:
Tropeçavas nos astros desastrada/ Quase não tínhamos livros em casa E a cidade não tinha livraria/ Mas os livros que em nossa vida entraram/ São como a radiação de um corpo negro/ Apontando pra a expansão do Universo/ Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ (E, sem dúvida, sobretudo o verso)/ É o que pode lançar mundos no mundo.
Antonio Carlos Jobim e Marino Pinto (1958) exploraram de forma humorística uma "Aula de Matemática" para fazer uma declaração de amor:
Pra que dividir sem raciocinar/ Na vida é sempre bom multiplicar/ E por A mais B/ Eu quero demonstrar/ Que gosto imensamente de você / Por uma fração infinitesimal,/ Você criou um caso de cálculo integral/ E para resolver este problema/ Eu tenho um teorema banal / Quando dois meios se encontram desaparece a fração/ E se achamos a unidade/ Está resolvida a questão / ... Que menos por menos dá mais amor/ Se vão as paralelas/ Ao infinito se encontrar/ Por que demoram tanto os corações a se integrar?/ Se infinitamente, incomensuravelmente,/ Eu estou perdidamente apaixonado por você.
No início dos anos 1930, Noel compôs com Orestes Barbosa "Positivismo", na qual usa a lei de Augusto Comte para admoestar uma querida orgulhosa que o amor vem por princípio e o progresso por fim. Não descura de uma referência jocosa à situação econômica da época e aos juros exorbitantes:
... Vai orgulhosa querida/ Mas aceita esta lição:/ No câmbio incerto da vida/ A libra sempre é o coração/ O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/ Desprezaste esta lei de Augusto Comte/ E foste viver feliz longe de mim/ Vai coração que não vibra/ Com teu juro exorbitante/ Transformar mais esta libra/ Em dívida flutuante.
2.4. Celebração de eventos científicos ou tecnológicos marcantes
Eventos como a passagem de cometa Halley ou a chegada do homem à Lua atraíram a atenção de poetas, artistas e compositores. A passagem do Halley foi motivo do interesse de compositores populares já na sua passagem de 1910,3 quando a letra da polca humorística "No Bico da Chaleira", de Juca Storoni (João José da Costa Jr.), sucesso do carnaval de 1909, foi adaptada com duplo sentido:
Lalá me deixa espiá nessa luneta/ Eu sou do grupo que gosta do cometa/ Cometa doHalley, cometa do ar,/ Levanta a cauda que eu quero espiar.
Em 1961, "A Lua é dos namorados", de Armando Cavalcânti, Klécius Caldas e Braguinha, referia-se à chegada próxima do homem à Lua e fazia a apologia do romantismo pretensamente ameaçado:
Todos eles estão errados/ A Lua é dos namorados/ Lua, ó Lua/ Querem te passar para trás/ Lua, ó Lua/ Querem te roubar a paz./ Lua que no céu flutua/ Lua que nos dá luar/ Lua, ó Lua/ Não deixa ninguém te pisar.
2.5. Impactos diversos de avanços científicos e tecnológicos
Produtos científicos ou tecnológicos que têm um impacto importante na sociedade, a exemplo da penicilina, são tomados como mote artístico, como pode ser visto na "Marcha da Penicilina", gravada em 1954 por Linda Batista. Note que ela não crê que a ciência médica resolverá todos os problemas 'doloridos' do ser humano:
Ai, Penicilina cura até defunto,/ Petróleo bruto faz nascer cabelo, / Mas ainda está pra nascer o doutor,/ Que cure a dor de cotovelo. / Vem desde os tempos de Adão,/ Essa dorzinha infernal,/ Foi comer a maçã,/ Logo que mordeu,/ O cotovelo doeu...
As técnicas de inseminação artificial também povoaram o imaginário dos artistas. É o caso da marcha "Bebê de Proveta", escrita por Braguinha. A música, surgida no carnaval de 1979, explorava o controverso anúncio do nascimento em julho do ano anterior de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta:
Bebê de proveta,/ Bebê de mutreta,/ O seu inventor,/ Que cara careta.Porque não sacou,/ Da sua veneta,/ Que a gente prefere,/ Bebê de chupeta.Romeu, Romeu,/ O que há com a sua Julieta?/ Trocou você, por um tubo de proveta.
O surgimento das novas tecnologias de comunicação tem grande impacto na sociedade e considerável repercussão no universo musical. Desenvolvido no final do século XIX, o telefone começou a tornar-se mais popular depois de 1900. Ele vai surgir de forma incidental em um dos primeiros sambas brasileiros gravados, "Pelo telefone", de Donga e Mauro de Almeida, em 1916:
O Chefe da Folia/ Pelo telefone manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione para se brincar/ Ai, ai, ai/ É deixar mágoas pra trás, ó rapaz/ Ai, ai, ai/ Fica triste se és capaz e verás/ ...
Em 1967, foi a vez de Chico Buarque tecer sua ironia poética e suas considerações sociológicas sobre o impacto da televisão na vida das pessoas:
O homem da rua/ Fica só por teimosia/ Não encontra companhia/ Mas pra casa não vai não/ Em casa a roda/ Já mudou, que a moda muda/ A roda é triste, a roda é muda/ Em volta lá da televisão/ ... / Os namorados/ Já dispensam seu namoro/ Quem quer riso, quem quer choro/ Não faz mais esforço não/ E a própria vida/ Ainda vai sentar sentida/ Vendo a vida mais vivida/ Que vem lá da televisão/ O homem da rua/ Por ser nego conformado/ Deixa a Lua ali de lado/ E vai ligar os seus botões/
Raul Seixas e Marcelo Nova se inspiraram em um novo equipamento para, sarcásticos, rirem da modernidade em "Você roubou meu videocassete" (1989):
Você roubou meu vídeo cassete/ Pensando que eu fosse o controle remoto/ Pra frente e pra trás só na sua/ Cabeça/ E antes que eu me esqueça "honey darling"/ É melhor desligar ... Você é tão possessiva/ Guardou minha imagem na sua televisão/ Você é tão abusiva/ Me prende e não muda pra outra/ Estação ...
Na década de 1990, Gilberto Gil incluiu "Pela Internet" no já mencionado álbum "Quanta" e, com ela, explorou o 'infomar', seus termos técnicos e a globalização emergente, fazendo referência ao mencionado "Pelo Telefone":
Criar meu web site/ Fazer minha home-page/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada/ Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar/ Que aproveite a vazante da infomaré/ Que leve um oriki do meu velho orixá/ Ao porto de um disquete de um micro em Taipé/ ...Eu quero entrar na rede/ Promover um debate/ Juntar via Internet/ Um grupo de tietes de Connecticut
2.6 Crítica e ironias aos usos da ciência e da tecnologia
Vem de longe a presença na música popular de letras que retratam impactos que a ciência e a tecnologia ocasionam na sociedade. Destacamos a marcha "Vacina obrigatória", de autoria desconhecida, gravada em 1904 e relacionada com a Revolta da Vacina, que ocorreu naquele ano contra a vacinação compulsória liderada por Oswaldo Cruz:
Anda o povo acelerado com horror à palmatória/ Por causa dessa lambança da vacina obrigatória./ Os panatas da sabença estão teimando dessa vez/ Em meter o ferro a pulso,/ Bem no braço do freguês./ E os doutores da higiene vão deitando logo a mão,/ Sem saberem se o sujeito/ Quer levar o ferro ou não./ Seja moço ou seja velho/ Ou mulatinha que tem visgo,/ Homem sério, tudo, tudo/ Leva ferro que é servido. ... Mas a lei manda que
o povo e o coitado do freguês/ Vá gemendo na vacina ou então vá pro xadrez./ ...Eu não vou neste arrastão sem fazer o meu barulho./ Os doutores da ciência/ Terão mesmo que ir no embrulho./ Não embarco na canoa, que a vacina me persegue./ Vão meter ferro no boi/ Ou no diabo que os carregue.
A bomba atômica também não passou despercebida, pela força agressiva com a qual literalmente implodiu a sociedade. Jorge Mautner e Nelson Jacobina introduzem esse perigo no cotidiano, em "Cinco bombas atômicas", de 1985:
Cinco bombas atômicas/ Em cima do meu cérebro/ Quando eu era pequeno/ Saudades eletrônicas/ Cinco bombas atômicas/ ...
A poesia de Vinícius de Moraes foi combinada com a melodia de Gerson Conrad para fazer grande sucesso com "Rosa de Hiroshima", na gravação do grupo Secos & Molhados, de 1973:
Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas/ Pensem nas meninas/ Cegas inexatas/ Pensem nas mulheres/ Rotas alteradas/ Pensem nas feridas/ Como rosas cálidas/ Mas, oh, não se esqueçam/ Da rosa da rosa/ Da rosa de Hiroshima/ A rosa hereditária/ A rosa radioativa/ Estúpida e inválida/ A rosa com cirrose/ A anti-rosa atômica/ Sem cor sem perfume/ Sem rosa sem nada.
2.7 Ciência nos sambas-enredo
Uma outra dimensão importante nas músicas são os sambas-enredo do carnaval. Desde os primeiros desfiles, no começo do século XX, temas ou referências a eventos ou resultados da ciência estiveram presentes de tempos em tempos. Citaremos aqui apenas um exemplo, já que uma análise mais aprofundada da ciência no carnaval brasileiro – que ainda está por ser feita – exigiria considerações sobre as representações da ciência no desfile por inteiro, em especial nas alegorias, alas e fantasias. "O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível" foi o enredo da Unidos da Tijuca, que ficou em segundo lugar no carnaval do Rio de Janeiro de 2004:
Nessa máquina do tempo, eu vou/ Vou viajar... (com a Tijuca te levar)/ À era do
Renascimento/ De sonhos e criação/ Desejos, transformação/ Acreditar, desafiar/ Superar
os limites do homem/ Brincar de Deus, criar a vida/ Querer voar e flutuar
Na arte da ciência/ A busca continua/ Na luta incessante pra vencer o mal/ E no vaivém
dessa história/ O velho sonho de ser imortal ...
3. Considerações finais
As canções foram sempre um referencial importante sobre a cultura de sua época e as visões, representações e atitudes do homem diante do mundo, da vida e da sociedade. A ciência e as visões sobre ela e seus impactos permeiam a cultura popular e encontram expressão através da pena de poetas e compositores. Às vezes, temas de ciência ou conceitos dela emanados assumem papel proeminente nas letras; em outras ocasiões a referência à ciência e aos avanços tecnológicos é apenas secundária ou incidental dentro da temática do poema musicado. Buscamos aqui identificar alguns exemplos em que temas de ciência e tecnologia povoaram o imaginário de compositores da música popular brasileira. A possibilidade de esses materiais adquirirem uso didático ou voltado para a divulgação
científica pode ser inferida, mas não foi, aqui, ponto de interesse maior. Longe de apresentar
um trabalho abrangente sobre o tema, nosso objetivo foi ilustrar, por meio da música, que a
ciência faz parte do tecido cultural da sociedade brasileira, servindo de inspiração para
muitos artistas, poetas e compositores. Temos ainda a pretensão de estimular a memória e a
reflexão do leitor curioso, que certamente encontrará diversos exemplos similares dentro da
música brasileira.
Terminemos esta nossa viagem musical com o rebelde Raul Seixas, buscando nele
elementos para a tese perene de que a música tem uma relação profunda com o universo e
sua descrição pelos humanos. Na composição com Oscar Rasmussen "O Segredo do
Universo" (1979), ele associou o mambo ao segredo do universo. Mesmo se discutível a
tese, ela nos convida a refletir, ou quem sabe a dançar no ritmo musical do universo:
Dentro do mambo e da consciência/ Está o segredo do universo/ Dentro do mambo e da
consciência/ Está o segredo do universo ...
Notas
- Disponível no site da Rádio Terra (radio.terra.com.br/), acessado em 24.05.2006.
- A 'natureza' também é tema recorrente na música, com 28 canções sob essa palavra-chave em busca na Rádio Terra, com músicos variados, desde Chico César a Jamelão. O livro de Gloria Pondé, Rosa Riche e Vera Sobral (1992) traz também uma coletânea interessante de poesias e músicas sobre o tema da natureza.
- Naquele ano, outras grandes sociedades (que antecederam as escolas de samba) incluíram também o tema do cometa em seus desfiles.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASDrake, Stillman 1992 Musics and Philosophy in Early Modern Science. In: Coelho, Victor (ed.) Music andscience in the age of Galileo. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers. p. 3-16.Matos, Maria Izilda Santos 2006 'Saudosa Maloca' vai à Escola. Nossa história, v. 3, n. 32, p. 80-2.Moreira, Ildeu de Castro 2002 Poesia na sala de aula. Física na escola, v. 3, n. 1, p. 17-23.Palisca, Claude 1992 Was Galileo's Father an Experimental Scientist? In: Coelho, Victor (ed.) Music andscience in the age of Galileo. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers. p. 143-52.Pondé, Gloria; Riche, Rosa; Sobral, Vera Brasil em cantos e versos: natureza. São Paulo: Melhoramentos. 1992
Wisnik, José Miguel 1999 O som e o sentido. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Wisnik, José Miguel 1999 O som e o sentido. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras.